
Quando erros tributários, societários e marcários colocam em risco o legado de uma empresa familiar
Por Gabriela Simon, Advogada Tributarista & Giovana Verona, Advogada Especialista em Direito da Moda
Introdução
O filme Casa Gucci é uma obra interessante que cativa os telespectadores, a história deixa qualquer um intrigado e o contexto nos instiga a desejar o luxo da marca.
Neste artigo vamos analisar como a falta de assessoria jurídica de qualidade pode levar à queda de um império familiar.
É interessante perceber como a queda da família Gucci foi paradoxal com o crescimento da marca: entre fraudes tributárias, uso indevido de marca, processos, intrigas e até mesmo assassinato, a marca segue sendo tendência de luxo.
Após a “queda da família”, a Gucci ressurgiu e é até hoje como uma das maiores potências do luxo mundial, porém sem nenhum vínculo societário com seus criadores (nenhum membro da família Gucci faz parte da empresa). E aqui está o paradoxo: Marcas podem até se reinventar e sobreviver após escândalos, já, o legado e a estrutura de uma família podem ruir e nunca mais serem reconstruídos.
A reputação da marca foi reconstruída após a reputação da família ter sido devastada, o que é consequência direta da falta de profissionalismo na gestão familiar que levou a irregularidades no uso da marca e o descumprimento da legislação tributária, resultando no fim do poder da família sobre a grife.
Breve histórico da marca – reputação externa X conflitos internos
Em 1906, Guccio Gucci fundou a Gucci, inicialmente como uma selaria, e, em 1921 concentrou a fabricação em artigos de couro artesanal como malas e valises luxuosas, tudo no mais alto padrão.
Gucci rapidamente levantou uma reputação de qualidade e sofisticação e em um ano a elite italiana buscava seus produtos.
A década de 1930 foi decisiva para a marca, com clientes internacionais renomados e a expansão dos negócios. Em 10 anos a pequena loja familiar se tornou uma grife famosa e querida pelas celebridades mundo afora. Foi nesta época que a segunda geração entrou no negócio com os filhos do fundador: Aldo, Vasco e Rodolfo Gucci.
A grife cresceu, ganhou novos produtos, atravessou fronteiras e 1953 inaugurou a primeira boutique da Gucci em Nova York.
Em diversas cenas do filme é possível ver o orgulho que os sucessores tinham da história, da qualidade e da relevância da marca, quando Aldo Gucci inicia a preparação de Maurizio como seu sucessor, ele faz questão de mostrar a história e a (aparente) bela reputação da marca.
Nessas cenas o telespectador também se encanta pela história da marca, mas alguns takes mais tarde, começa a perceber que apenas reputação externa não sustenta um império familiar.
A bela reputação sustentada por Guccio Gucci e seus filhos começa a ser desmascarada com a gestão da terceira geração, quando Maurizio Gucci passa a gerenciar a marca, as intrigas familiares se intensificam e as irregularidades começam a vir à tona.
Não se sabe quando começaram as irregularidades tributárias e societárias da empresa, mas a “receita” para a queda do império familiar foi: a disputa de egos e interesses pessoais combinada com a ganância dos gestores e com uma assessoria jurídica maliciosa de Domenico De Sole.
O filme não é apenas uma obra cinematográfica baseada em fatos reais. Ele se revela como um estudo jurídico sofisticado sobre como falhas na gestão, na governança, na proteção de marca e no compliance tributário podem comprometer o destino de uma empresa familiar — mesmo quando essa empresa é uma das maiores casas de luxo do mundo.
O final já é conhecido, a grife chegou à beira da falência e a família Gucci desmoronou, o que resultou na venda da marca, em 1993, para a empresa Investcorp. Extinguindo-se, assim, o poder dos Guccis sobre a grife que leva o seu nome ao mundo.
A queda dos Gucci segue um padrão recorrente em muitas empresas familiares: ausência de governança, mistura entre interesses pessoais e empresariais, fragilidade jurídica e, principalmente, negligência em relação à legislação tributária e à proteção da marca.
A história, portanto, funciona como alerta jurídico e revela que erros aparentemente pontuais podem desencadear efeitos irreversíveis.
A análise do uso indevido da marca Gucci e uma reflexão sobre a importância do registro de marca
Entre os escândalos envolvendo a marca Gucci, um dos acontecimentos retratados na trama que mais possui impacto para a marca do ponto de vista jurídico, foi a tentativa de Paolo Gucci, quando insatisfeito com sua posição dentro da empresa e durante conflitos familiares, tenta lançar produtos utilizando seu próprio nome e elementos visuais e simbólicos já anteriormente associados à Gucci.
Nesse caso, o que pode parecer somente uma tentativa de se desvencilhar da empresa familiar, na realidade, trata-se de uma típica violação à propriedade intelectual, com o uso indevido de marca registrada, enquadrando-se também em crime de concorrência desleal.
A marca Gucci, à época deste fato retratado no filme, já era consolidada como valioso ativo econômico, protegido pela legislação de propriedade industrial italiana. Enquanto sinal distintivo, constituía elemento central da identidade da grife, representando também seu capital simbólico dentro do mercado de luxo.
Assim, traçando um paralelo com a legislação brasileira, a empresa que registra a sua marca perante o INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) adquire o uso exclusivo desse sinal distintivo, nos moldes do art. 129 e seguintes da Lei da Propriedade Industrial (Lei n. 9.279/1996).
No Brasil, o titular do registro da marca possui o direito de zelar pelo uso correto dessa marca, podendo se opor contra qualquer uso indevido (art. 130, III da Lei n. 9.279/1996).
Portanto, no momento em que Paolo tenta usar seu sobrenome como marca sem autorização, que, apesar de usar seu nome civil, é nome já registrado como marca por uma empresa, ele incorre em uma violação de direito marcário (art. 189, I, da Lei n. 9.279/1996), passível de sanções civis e criminais, e abre brechas para os donos da marca Gucci apresentarem oposição contra o uso do sobrenome já registrado.
Esse conflito entre Paolo e os demais membros da família evidencia um ponto crucial: quando a marca se confunde com o nome civil, a ausência de orientação jurídica correta tem o poder de amplificar disputas internas.
Ademais, como citado acima, uma das consequências desse uso indevido de marca é o crime de concorrência desleal. O uso por Paolo da marca “Gucci” em seus produtos, que naquele momento já estava consolidada no mercado de luxo, evidencia a tentativa de usufruir da reputação da marca para facilitar a venda de seus produtos, ocasionando, assim, um desvio de clientela (art. 195, III e IV, da Lei n. 9.279/1996).
Esse conflito específico demonstra a importância da proteção jurídica da marca, ou seja, o seu devido registro, uma vez que até mesmo disputas familiares são capazes de gerar consequências complexas quando inseridas no contexto empresarial, principalmente no setor de luxo onde a marca possui um valor intangível e qualquer uso indevido pode significar perdas milionárias.
Crimes tributários e o colapso da governança na família Gucci
Embora o conflito sobre o uso da marca tenha gerado impacto relevante dentro da empresa e dentro da família, o fator que precipitou o desmonte da estrutura familiar foi a fraude fiscal cometida por Aldo Gucci e seu filho Paolo. A acusação de evasão fiscal nos Estados Unidos culminou na condenação e prisão de Aldo, figura central na administração da empresa.
Sob a perspectiva brasileira, condutas como ocultação de receita e sonegação de valores devidos ao Fisco encontrariam enquadramento no art. 1º da Lei n. 8.137/1990, que define crimes contra a ordem tributária. Além disso, o Código Tributário Nacional prevê hipóteses de responsabilidade de sócios, administradores e representantes legais pelos tributos da pessoa jurídica quando houver prática de atos ilícitos, abuso de poder ou infração à lei (arts. 134 e 135).
A queda de Aldo demonstra que a fraude fiscal não é um problema isolado. Ela compromete a credibilidade institucional, abala a legitimidade da liderança, fragiliza a governança e intensifica disputas internas.
Muitas vezes os sucessores herdam junto com a empresa todo um esquema de sonegação tributária e falta de gestão de impostos que já está embutida na cultura da empresa.
É o que vemos com as acusações feias contra Maurizio Gucci sobre fraudes fiscais, que levaram o sucessor a fugir para a Suíça, ou seja, o problema tributário foi herdado junto com a grife.
A falta de gestão tributária e regularidade fiscal pode levar aos crimes tributários que são grandes responsáveis pela destruição de impérios familiares.
No universo das empresas familiares, a figura do administrador é elemento estruturante; quando ele perde reputação, a coesão do grupo se desfaz. A família Gucci tornou-se vulnerável exatamente no momento em que sua liderança foi enfraquecida pelo escândalo tributário.
O efeito dominó: da fragilidade interna à perda completa da marca
O escândalo fiscal abriu espaço para que conflitos societários, já latentes, evoluíssem de maneira acelerada.
Com a fragilidade reputacional dos membros da família, investidores externos avançaram sobre a estrutura societária, participações foram diluídas, acordos foram rompidos e a capacidade de decisão dos herdeiros se deteriorou.
Em poucos anos, a família Gucci não detinha mais qualquer participação na empresa que carregava seu sobrenome. O que havia começado como um conflito familiar tornou-se um processo de desintegração patrimonial e perda de controle societário.
Esse desfecho oferece um alerta claro às empresas familiares brasileiras: litígios tributários, societários e marcários, quando negligenciados, produzem perdas que não se limitam ao âmbito financeiro. Produzem perda de governança, de estabilidade e, em casos extremos, da própria identidade empresarial.
O renascimento corporativo da Gucci x Herança da cultura de evasão fiscal
Após a saída definitiva da família, a marca Gucci iniciou um dos processos de reestruturação mais bem-sucedidos da história do setor de luxo. Organizou sua governança, implementou estruturas profissionais de direção e fortaleceu controles interno.
A entrada de capital internacional — inicialmente pelo fundo Investcorp e posteriormente pelo grupo Kering — possibilitou a expansão global da marca com consistência e visão estratégica.
Diretores criativos como Tom Ford e, posteriormente, Alessandro Michele, reposicionaram artisticamente a grife, enquanto a estrutura corporativa consolidava práticas de compliance e de gestão de risco que antes eram inexistentes.
Entre 2017 e 2019, o grupo Kering (atual dono da marca Gucci) reviveu o terror do passado e foi investigado por fraudes tributárias, que resultaram no pagamento de 1,25 bilhão de euros ao governo italiano.
O pagamento resultou de um acordo entre Kering e as autoridades italianas, e foi absorvido pela reserva de caixa da empresa, que segundo a Agência Reuteurs era estimada à época no valor de 10 bilhões de euros.
O acordo resolveu a questão legal e financeira na época, permitindo que a empresa regularizasse sua situação fiscal na Itália.
Contudo, nos últimos anos as vendas da Gucci têm sofrido quedas representativas. Especialistas alegam que a queda nas vendas não tem relação com o acordo tributário de 2019, e que os resultados financeiros subsequentes da Gucci foram dominados por fatores de mercado, estratégias de marca e tendências do consumidor, e não pelos impactos contínuos desse acordo tributário pontual.
Apesar de financeiramente a Kering não ter tido um grande abalo em decorrência dos problemas tributários, sua reputação foi impactada, principalmente em relação aos aspectos de ESG, sigla que a empresa tem defendido através de diversas ações nos últimos anos.
Em meio a uma persistente queda na demanda por produtos de luxo que seguiu um boom de consumo pós-pandemia, a Kering tem enfrentado dificuldades para revitalizar sua marca principal, a Gucci.
Segundo o jornal Valor Econômico, em setembro de 2025, De Meo, ex-CEO da montadora Renault, assumiu o comando no lugar de François-Henri Pinault, filho do fundador do grupo e CEO por décadas. Essa mudança ocorreu após uma queda nas ações que fez o preço dos papéis da Kering cair pela metade nos últimos quatro anos, à medida que os investidores perderam a confiança na Gucci – em decorrência de mudanças na marca, investigações por práticas anticompetitivas e fraudes tributárias -, antes uma estrela entre as marcas de moda europeias.
Assim, a marca renasceu após a queda familiar, tornando-se ainda mais forte, reconhecida globalmente e admirada em todos os polos da moda e do luxo, entretanto, é nítido que a Gucci não é intocável e a grife ainda derrapa nas questões fiscais e de reputação, mas por ter uma governança profissionalizada e por ter reconstruído uma reputação sólida, consegue se manter em alta.
Esse processo revela que, quando a governança é fortalecida, a marca pode superar crises profundas.
Conclusão
Hoje, a marca Gucci é um dos nomes mais conhecidos e valiosos do mercado de luxo mundial. Paradoxalmente, nenhum membro da família detém participação societária ou poder decisório na empresa. O nome familiar transformou-se em patrimônio exclusivamente corporativo.
A história demonstra que marcas consolidadas podem sobreviver a escândalos, crises familiares e rupturas internas. Porém, famílias empresárias, quando carecem de governança jurídica, proteção marcária e compliance tributário, dificilmente conseguem sobreviver ao impacto desses erros.
O caso Gucci reúne todos os elementos que devem servir de alerta às empresas familiares: a necessidade de proteção de marca adequada, a importância crucial de um compliance tributário rigoroso, a urgência de estruturar uma governança societária sólida e a relevância de separar o patrimônio empresarial do patrimônio familiar.
Vamos aguardar quais serão os próximos capítulos da histórica da Gucci, esperamos que a marca não gere enredo para mais uma parte de House of Gucci, e que boas práticas de governança deixem a grife ainda mais forte no mercado.